sexta-feira, setembro 12, 2003

Hoje não me apetece acusar ninguém, mas somente fazer alguns breves comentários.

Li ontem no "Público" dois artigos que me chamaram à  atenção.

Um intitulado "Memorial dos anos felizes" da autoria de Lui­s Sepúlveda, que me levou para os anos da juventude imberbe em que ainda era possí­vel acreditar em construir um Mundo novo e me relembrou as páginas de um livro de Zola intitulado "Trabalho", que li quando tinha os meus 14 anos, e que me fez acreditar que a utopia estava mesmo ali ao alcance de uma mão. Tudo o que é relatado neste excelente artigo me aviva memórias do pós 25 de Abril, tempo em que, e cito, "(...) houve homens que deram tudo pensando que não era o suficiente (...)". Claro que fomos manipulados, claro que se cometeram muitos erros, mas, e cito novamente, "(...) éramos autodidatas na grande tarefa de transformar a sociedade (...)". Parabéns Luis Sepúlveda!

O outro trouxe-me à  triste e vil tristeza, isto é, à realidade do Mundo em que vivemos. Intitula-se "A nova guerra total" e é da autoria de José Pacheco Pereira. Nessa mesma noite estava a ver televisão, não, não estava a ver o "Big Brother", embora este também seja fruto da época. Estava simplesmente a fazer "zapping" na tentativa de encontrar algo que me prendesse a atenção, senão quando na SIC Notí­cias encontro um frente a fente entre Mário Soares e Pacheco Pereira. O programa já devia ir adiantado, mas ainda deu para tirar algumas conclusões. Raramente tenho concordado com as opiniões de um e outro (começo a ficar preocupado com esta mania de não concordar com ninguém, mas continuando com o aparte, a verdade é que também achei alguma graça ao Carlos Carvalhas quando foi buscar as convicções religiosas do Paulo Portas para o criticar em relação ao caso Magiolo Gouveia - então o homem tem tantas pontas por onde pegar e o meu caro só se lembra das suas, dele, convicções religiosas? Eu até sou ateu, mas que diabo isso é do foro í­ntimo de cada um, quanto ao resto é que já não), deixemos os apartes e tentemos retomar o fio à  meada. Dizia então que raramente concordei com as opiniões de ambos (Mário Soares e Pacheco Pereira e já agora para que não restem dúvidas, Carlos Carvalhas e Paulo Portas), mas costou-me ver Mário Soares longe do brilhantismo dialéctico a que nos tinha habituado, e sem capacidade de contrapor um discurso dinâmico a uma pessoa que demonstrou que está muito à  vontade nos órgãos de comunicação social e particularmente na televisão.

Voltando ao artigo e aos argumento utilizados no debate, não pretendo fazer nenhuma aná¡lise exaustiva, mas somente comentar duas ou três questões defendidas por Pacheco Pereira.

As questões são as seguintes: a dicotomia democracia-ditadura, a relação terrorismo-pobreza, quanto às restantes questões levantadas quer no artigo, quer no frente-a-frente dispenso-me de tecer comentários porque estão já a ser amplamente debatidas e portanto penso que não iria acrescentar nada de novo, se é que as minhas opiniões acrescentam algo de novo.

Primeira questão: O debate entre democracia e ditadura, tal como as entedemos hoje, só começou a ser verdadeiramente discutido, como é óbvio, depois da Revolução Francesa, ganha importância a partir do momento em que Mussolini chega ao poder em Itália, mas só com a "Guerra Fria" ganha verdadeira dimensão. É portanto um debate muito recente na História da Humanidade e longe de estar esgotado. Antes da Revolução Francesa todos os regimes ou eram considerados de origem divina, ou oligárquicos, aristocráticos, dinásticos, militares, etc., portanto ditaduras. Até o berço das democracias actuais, a Grécia Clássica estava muito longe de, e passe o anacronismo, ser considerada uma democracia pelos valores actuais. Mas como dizia alguém "a democracia é o melhor sistema, com a excepção de todos os outros", para isso será necessário continuar a aprofundar o debate na tentativa de aperfeiçoarmos a democracia.

Segunda questão: Então, meu caro Pacheco Pereira, a pobreza não é um factor gerador de terrorismo? O colonialismo também não? E argumenta que a prova é que não existe terrorismo em África. Então os milhares ou milhões, sei lá, de africanos que se matam uns aos outros todos os dias não é uma forma de terrorismo? Os milhares ou milhões de africanos, asiáticos ou latinos que rumam à Europa, ou aos EUA, em busca da legítima sobrevivência ou de melhorar as suas duras condições de vida não são ví­timas do terrorismo? E estes que depois são marginalizados nos paí­ses ricos que se juntam a outros deserdados e desempregados não são o terreno fértil para o recrutamento pelos tais ditos intelectuais para serem carne para canhão e levarem a cabo as acções terroristas? Neste ponto não posso estar mais em desacordo consigo. Se o sentimento de revolta do povo alemão contra às imposições do Tratado de Versalhes e a miséria provocada pela crise económica não fossem tão grandes, Hitler nunca passaria de um simples pintor frustrado.

Todos nós temos um determinado percurso, resultado das nossas experiências e vivências e, quer queiramos quer não, somos aquilo que fizermos de nós e, quanto a mim, parece-me que o seu passado estalinista-maoista lhe deixou marcas de alguma rigidez e de auto-convenciento. Um pouco de modéstia e de tolerância não ficam mal a ninguém, muito menos a um homem público. A rigidez não é boa conselheira e afectam gravemente as estruturas que acabam por colapsar mais cedo ou mais tarde, vidé URSS, RPC, Estado Novo, Nazismo, regime Albanês, etc.

Sem querer lá acabei por falar das pontes, é que uma ponte é mais sólida quando a sua estrutura apresenta uma certa maleavilidade, as pontes que sofrem de rigidez estrutural caiem.

Para terminar este artigo que já vai longo e é fruto de uma noite de insónia concluo que não são os lí­deres que fazem os povos, mas sim os povos que fazem os lí­deres, de acordo com o acaso, as circunstâncias e as necessidades, por isso o progresso da Humanidade é feito de avanços, recuos e saltos ou mutações que podem ser reversí­veis ou não. Tudo é relativo e só as mudanças estruturais são eficazes.


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