sábado, outubro 11, 2003

CICLO FERNANDO PESSOA (1888-1935) - IV



O Espiritualismo Pessoano

Texto de Isabel M. França


Há aspectos da personalidade de Pessoa de que se fala muito, os fenômenos de mediunidade e o ocultismo, pelo qual ele parecia muito interessado. Parece-me até que fazem parte do seu mundo espiritualista e são dados relevantes na análise da sua personalidade e da sua obra. De fato isso tem dado muito pano para mangas e tem um fundo de verdade. Ele sempre gostou do mistério, do oculto. Chegou a participar em concursos de charadismo, tal era o seu interesse em decifrar e resolver problemas complicados. Era ele que dizia qualquer coisas como: “Tenho interesse pela vida como um decifrador de charas.” É realmente uma faceta do seu caráter que não se pode esquecer. Adorava astrologia, e chegou a fazer, como se sabe, vários horóscopos de amigos seus, dos seus heterônimos e também o horóscopo de Portugal e, diga-se, com bastante precisão. Desde criança sempre leu imenso sobre astrologia.

Parece-me que ele começou muito cedo a interessar-se de uma forma reveladora, de uma alma bastante evoluída, pelo sentido do universo. Assim, nos tempo da sua infância, a sua imaginação é já extremamente poderosa. Na adolescência o seu intelecto começa a penetrar nos diversos campos do ocultismo. Quando chega a Portugal, ele traz já consigo uma alma tão vasta e profunda, que o meio português só podia ser para ele um campo a fertilizar e, por isso, se assumirá como super-Camões na revista a “Águia” que substanciava na época o que de melhor tínhamos de sensibilidade e inteligência.

Contudo a sua imaturidade era ainda grande e, portanto, a sua genialidade brotava do ego e não duma relação com ordem do universo. Será este o choque que ele recebeu ao ler as obras teosóficas que fora encarregado de traduzir. É aqui que Fernando Pessoa começa realmente a assumir mais profundamente a possibilidade de um conhecimento espiritual completo e verdadeiro. Depois a sua sede de uma maior compreensão de si próprio, do universo e de Deus levam-no a começar a investigar os diversos outros movimentos e tradições, que já não são tão marcadamente orientais, como o era a Teosofia. É pois neste sentido que ele aprofundará a Cabala, a Maçonaria, os Templários, os Rosa-Cruzes, a Alquimia, etc.

Realmente o espiritismo representa uma das primeiras experiências que Pessoa faz no campo do oculto. Mais tarde ele assumirá uma posição crítica em relação ao mediunismo, mas 1915 e 1916 são inúmeras as consultas que ele faz aos espíritos para que o informem desde as coisas triviais, como amor e o dinheiro, às coisas mais ligadas com sua missão. São muitos os perigos que podem resultar da prática do espiritismo. Nos textos que nos restam, alguns há em que ele aponta as respostas dos presumíveis espíritos, e há mesmo situações de conflito, em que certos espíritos lhe dizem que ele está a ser vítima de maus espíritos. Outros textos apresentam provas de inegável valor espiritual. Será de atribuir tudo a espíritos ou em grande parte ao seu subconsciente? A partir de 1917-18 Pessoa deixa de praticar e escreve o seu já conhecido relatório sobre “Um caso de mediunidade”, que é ele próprio, e afasta-se de tais práticas, para se abrir a um invisível, que não sabemos o que é, e que não é controlado pela vontade.

A célebre carta que Fernando Pessoa escreve a sua tia Anica, escrita em 1916, será um texto verdadeiro e importante para a compreensão da sua espiritualidade? Talvez seja melhor reler-lhe a carta:

“O fato é o seguinte. Aí por fins de Março ( se não me engano) comecei a ser médium. Imagine! Eu, que ( como deve recordar-se) era um elemento atrasador nas sessões semiespíritas que fazíamos, comecei, de repente, com a escrita automática. Estava uma vez em casa, de noite, vindo da Brasileira, quando, senti vontade de, literalmente, pegar numa pena e pô-la sobre o papel. É claro que depois é que dei por o fato de que tinha esse impulso. No momento, não reparei no fato, tomei-o como o fato, natural em quem está distraído, de pegar numa pena para fazer rabiscos. Nessa primeira sessão comecei por a assinatura (bem conhecida de mim) ‘Manuel Gualdino da Cunha’. Eu nem longe estava pensando em meu tio Cunha. Depois escrevi umas coisas, sem relevo, nem interesse nem importância.

De vez em quando, uma vezes voluntariamente, outras obrigado, escrevo. Mas raras vezes são ‘comunicações’ compreensíveis. Certas frases percebem-se. E há sobretudo uma coisa curiosíssima - uma tendência irritante para me responder a perguntas com números; assim como há a tendência para desenhar. Não são desenhos de coisas mas de sinais cabalísticos e maçônicos, símbolos do ocultismo e coisas assim que me perturbam um pouco. Não é nada que se pareça com a escrita automática da tia Anica ou da Maria - uma narrativa, uma série de respostas em linguagem coerente. É assim mais imperfeito, mas muito mais misterioso.

...

Guardo, porém, para o fim o detalhe mais interessante. É que estou desenvolvendo qualidades não só de médium escrevente mas também, de médium vidente. Começo a ter aquilo a que os ocultistas chamam a ‘visão astral’ e também a chamada ‘visão etérica’. Tudo isto está muito em princípio, mas não admite dúvidas. É tudo, por enquanto, imperfeito e em certos momentos só, mas nesses momentos existe.

Há momentos, por exemplo, em que tenho perfeitamente alvoradas (?) de ‘visão etérica’ - em que vejo a ‘aura magnética’ de algumas pessoas e, sobretudo, a minha ao espelho e no escuro, irradiando-me das mãos. Não é alucinação, porque o que eu vejo outros vêem-no, pelo menos um outro, com qualidades destas mais desenvolvidas. Cheguei, num momento feliz de visão etérica, a ver, na Brasileira do Rossio, de manhã as costelas de um indivíduo através do fato e da pele. Isto é que a visão etérica no seu pleno grau. Chegarei eu a tê-la realmente, isto é, mais nítida e sempre que quiser?

A ‘visão astral’ está muito imperfeita. Mas às vezes, de noite, fecho os olhos e há uma sucessão de pequenos quadros, muitos rápidos, muito nítidos (tão nítidos como qualquer coisa do mundo exterior). Há figuras estranhas, desenhos, sinais simbólicos, números (também já tenho visto números), etc.

E há - o que é uma sensação muito curiosa - por vezes a sentir-me de repente pertença de qualquer outra coisa. O meu braço direito, por exemplo, começa a ser-me levantado no ar sem eu querer. ( É claro que posso resistir, mas o fato é que não o quis levantar nessa ocasião). Outras vezes sou feito cair par um lado, como se estivesse magnetizado, etc.

Perguntará a tia Anica em que é que isto me perturba, e em que é que estes fenômenos - aliás, ainda tão rudimentares -me incomodam? Não é o susto. Há mais curiosidade do que susto, ainda que haja às vezes coisas que metem certo respeito, como quando, várias vezes, olhando para o espelho, a minha cara desaparece e me surge uma face de homem de barbas ou um outro qualquer (são quatro, ao todo, os que assim aparecem).

O que me incomoda um pouco é que eu sei pouco mais ou menos o que isso significa. Não julgue que é loucura. Não é: dá-se até o fato curioso de, em matéria de equilíbrio mental, eu estar bem como nunca estive. É que tudo isto não é vulgar desenvolvimento de qualidades de médium. Já sei o bastante das ciências ocultas para reconhecer que estão sendo acordados em mim os sentidos chamados superiores para um fim qualquer que o mestre desconhecido, que assim me vai iniciando, ao impor-me esta existência superior, me vai dar um sofrimento muito maior do que até aqui tenho tido, e aquele desgosto profundo de tudo o que vem com a aquisição destas altas faculdades. Além disso, já o próprio alvorecer dessas faculdades é acompanhado duma misteriosa sensação de isolamento e de abandono que me enche de amargura até o fundo da alma. Enfim, será o que tiver de ser.
Eu não digo tudo, porque nem tudo se pode dizer: Mas digo o bastante para que, vagamente, me compreenda.

Não sei se realmente julgará que estou doido. Creio que não. Estas coisas são anormais, sim, mas não antinaturais.”

Nesta carta que contém várias afirmações importantes, o que oferecerá mais interesse será a visão etérica e astral que ele teve nessa época. Ora Pessoa, que na altura já estava a ficar a par dos ensinamentos mais profundos da Teosofia, pensou que estava a ser guiado por mestre desconhecido numa iniciação dos seus sentidos superiores. O que aqui surge mais interessante é pensarmos que na altura, tinha 28 anos e podia aspirar, sem dúvida alguma, a um despertar espiritual com a conta peso e medida que seu mestre interno ou até algum mestre externo lhe transmitisse. Porém, a sua missão nesta sociedade portuguesa tão atrasada e materialista foi muito mais a de um escritor, que tenta quebrar a estagnação do meio, abrir sensibilidades e posições de vidas novas e revolucionárias, do que a posição e a missão dum discípulo dos mestres.

O espiritualismo pessoano é apenas mais uma mistificação?

Se bem que o caráter de dramaturgo, de criador literário fosse um dos traços mais salientes da já multifacetada personalidade de Pessoa, mas não há dúvida alguma que, como alma, ele assumiu o caminho espiritual que desde muito novo o inspirou e que até à morte sempre o norteou. Com efeito, toda a alma é religiosa, ele próprio o disse: “Um homem que não acredita em Deus é um animal.”

Se é um fato que ele atravessou fases muito cépticas e anticrísticas, nunca, porém deixou de acreditar, e, com o tempo, teve a certeza que existe o espírito, os grandes seres, a divindade, e que nós em evolução temos que nos assumir como corpos, almas e espíritos sob as orientações dum todo, que a ele constantemente inspiraram.

E assim podemos dizer que ele teve experiências concretas espirituais, que não é só invenção de palavras, mas foram estados de consciência produzidos pelas suas meditações e pela sua vida, e que de tal modo foram importantes, que ele as procurou sistematizar em diversos textos, em que ensina ou transmite a revelação dos princípios da ordem do universo e da própria hierarquia divina.
Talvez que a famosa carta escrita por Fernando Pessoa a Casais Monteiro, em 1935, possa explicar melhor essa hierarquia divina:

“Falta responder à sua pergunta quanto ao ocultismo. Pergunta-me se creio no ocultismo. Feita assim, a pergunta não é bem clara; compreendo, porém, a intenção e a ela respondo. Creio na existência de mundos superiores ao nosso e de habitantes desses mundos, em experiências de diversos graus de espiritualidade, satirizando-se até se chegar a um Ente Supremo, que presumivelmente criou este mundo. Pode ser que haja outros Entes, igualmente Supremos, que hajam criado outros universos, e que esses universos coexistam com o nosso, interpenetradamante ou não. Por essas razões, e ainda outras, a Ordem externa do Ocultismo, ou seja, a Maçonaria, evita (exceto a Maçonaria anglo-saxônica) a expressão ‘Deus’, dadas as suas implicações teológicas e populares, e prefere dizer ‘Grande Arquiteto do universo’, expressão que deixa em branco o problema de se Ele é criador ou simples governador do mundo. Dadas estas escalas de seres, não creio na comunicação direta com Deus, mas, segundo a nossa afinação espiritual, podemos ir comunicando com seres cada vez mais altos. Há três caminhos para o oculto; o caminho mágico (incluindo práticas como as do espiritismo, intelectualmente ao nível da bruxaria, que é a magia também), caminho esse extremamente perigoso em todos os sentidos; o caminho místico, que não tem propriamente perigos, mas é incerto e lento; o que se chama o caminho alquímico, o mais difícil e o mais perfeito de todos, porque envolve uma transmutação da própria personalidade, que a prepara, sem grandes riscos, antes com defesas que os outros caminhos não tem. Quanto à ‘iniciação’ ou não, posso dizer-lhe só isto, que não sei se responde à sua pergunta: não pertenço a Ordem Iniciática nenhuma. A citação epígrafe ao meu poema Eros e Psique, de um trecho (traduzido, pois o Ritual é em latim) do Ritual do Terceiro Grau da Ordem Templária de Portugal, indica simplesmente - o que é um fato - que me foi permitido folhear os Rituais dos três primeiros graus dessa Ordem, extinta ou em dormência desde cerca de 1888. Se não estivesse em dormência, eu não citaria o trecho do Ritual, pois se não devem citar (indicando a origem) trechos de Rituais que estão em trabalho...”

Dois meses depois, a 30 de Março de 1935, no Resumo biográfico, ele esclarecerá a sua posição iniciática, se bem que tenha pedido que não fosse revelado: “Iniciado, por comunicação direta de Mestre a discípulo, nos três graus menores da (aparentemente extinta) Ordem Templária de Portugal.”


colocado por Isa


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