segunda-feira, junho 07, 2004

NARCISOS MODERNOS


Há milhões de anos descemos das árvores e conhecemos um mundo novo. Adotamos a postura ereta porque era necessário. Evoluímos. Há cerca de dez mil anos, aprendemos a cultivar o solo. Entre outras coisas, a principal vantagem foi poder se estabelecer. Ter um chão. Extrair da terra o nosso sustento. Até porque, caçar não era nada fácil.

Com isso, nos fixamos, criamos raízes. A revolução agrícola trouxe uma série de outras conseqüências. A maioria delas vantajosas. Por exemplo: comunidades se formaram e, em parte, nos obrigamos a conviver de maneira muito mais próxima. É nessa época que surgem as primeiras cidades (vilas). Daí até a tal da modernidade (Revolução Industrial), continuamos a progredir. Porém, sempre numa velocidade – diria eu –"compatível". Havia tempo para assimilações. Não que tudo fosse uma perfeição. Houveram guerras, mortandade. Mas, se olharmos, em comparação aos dias de hoje, a vida era mais tranqüila.

A coisa começou a ficar feia há cerca de 250 anos. A Revolução Industrial ajudou a criar os grandes centros urbanos. A maioria da população abandonou o campo para viver nas grandes cidades. Nossos avós nasceram em lugares habitados por 10 mil, 20 mil pessoas. Todo mundo conhecia todo mundo. Todo mundo tinha suas qualidades e defeitos. Pelo número restrito de indivíduos, em parte, eles eram obrigados a aceitar as diferenças, o modo de cada um. Vamos a um exemplo prático. Imagine que você nasceu numa cidadezinha de 20 mil habitantes. Se você tem 20 anos de idade e uma de suas características for a tolerância, isso permitirá que você se relacione com os prováveis 150 jovens de sua faixa etária. Se for intolerante, esse número irá reduzir-se consideravelmente, não? Que tal cerca de dez conhecidos? Nem preciso explicar como isso diminuirá suas possibilidades de ser bem-sucedido em sua comunidade.

As últimas décadas promoveram o inchaço dos grandes centros. Hoje, a maioria da população (75%) vive concentrada em metrópoles. Cidades com mais de um milhão de habitantes são comuns. E continuam a crescer, quer dizer, inchar. Isso permitiu que eu, você, nos tornássemos intolerantes. Claro, nesses aglomerados humanos, usando o mesmo exemplo descrito no parágrafo anterior, encontraríamos alguns milhares de jovens com a mesma faixa etária que a nossa (20 anos). Em termos evolutivos, vamos ser justos, ainda não tivemos tempo suficiente para aprendermos a lidar com tal quantidade de pessoas convivendo em um espaço tão pequeno. Pelo contrário, diferentemente de nossos antepassados, não só nossos avós, tivemos de aprender a ser seletivos.

Viva a modernidade! Ela é intolerante, o que contraria frontalmente um dos conceitos fundamentais do processo evolutivo que é a inteligência e, por conseqüência, a tolerância. Evoluímos, e nos agrupamos, para afastarmos uns aos outros. Aliás, nada é mais moderno do que discutir a tolerância, e por tabela, a inclusão. Discute-se o acesso de deficientes, de negros, de pessoas vindas de escolas públicas às universidades. Discute-se direitos dos homossexuais. Discute-se a tolerância religiosa.

Enquanto isso...

Enquanto isso, no Oriente Médio, cristãos, judeus e muçulmanos se matam. Mudam as técnicas (evolução), muda o armamento (evolução), mas nada parece mudar naquela região desde o tempo das Cruzadas. Aliás, nada muda desde quando o profeta Maomé (a paz esteja com ele) brigou com os governantes de Jerusalém, e, em represália, mudou um preceito de sua religião nascente: em vez de rezar voltados àquela cidade, seus seguidores agora rezariam voltados à Meca. Mas a confusão começou muito antes, se formos levar em conta os escritos bíblicos. Quem deu a primeira facada? Quem sabe tudo não começou com uma briga entre dois comerciantes, no tempo em que Jerusalém era apenas um importante entreposto comercial e as religiões ainda não tinham entrado na dança. Impossível dizer. Mas, de vingança em vingança, temos hoje um cenário caótico.

Tolerância? Que tolerância? Nesse meio tempo, em nome de Jesus, cristãos resolveram atacar e assaltar Jerusalém. Estou certo que nem Maomé nem Jesus Cristo nem Alá concordariam com isso, se fossem consultados, claro.

José do Patrocínio. Machado de Assis. Se tivemos esses intelectuais negros e mulatos no passado, a lógica diz que, hoje, pelo aumento da população, deveria haver dezenas deles por aí, freqüentando as listas de best-sellers, defendendo teses no exterior, ocupando metade dos ministérios. É o que acontece?

Tolerância? Que tolerância? Se a intolerância nunca deixou de existir, agora piorou muito, graças a um invento fantástico e ao mesmo tempo terrível. Na verdade, você está olhando para ele. Com os computadores e a Internet, ficou muito fácil se achar. As pessoas preferem entrar em salas de bate-papo, procurar pessoas parecidas com elas a conviver em seu círculo familiar. Em vez de conhecer o novo, experimentar o diferente, aprender com os mais velhos é muito mais fácil conhecer iguais. Desse jeito, em pouco tempo, não conheceremos nem os nossos vizinhos. Nelson Rodrigues já dizia que toda unanimidade é burra.

A Internet tornou-se um grande espelho narcisístico onde você se olha, se mira (e admira) em suas idéias, e rejeita todo o resto. Não quero negar a evolução nem desmerecer a tecnologia. De maneira geral, ela é positiva. Traz muito benefícios. Mas, como já disse Caetano: "Narciso acha feio o que não é espelho".

Hoje, vemos que muito narciso destrói o que não é espelho. É tempo de mudar. Até porque todos sabemos o que aconteceu com Narciso, certo?


Jornal Virtual Professor Mestre



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