sábado, julho 24, 2004

O Inventário das Coisas Perdidas

 
A meu avô aquele dia o vi diferente. Tinha o olhar enfocado ao longe. Quase ausente. Penso agora que talvez pressentisse que era o último dia de sua vida.
 
Me aproximei e disse: "Bom dia avô!" E ele estendeu a sua mão em silêncio. Me sentei junto ao seu sofá e depois de uns instantes um tanto misteriosos, exclamou: - "Hoje é dia de inventário, filho!"
 
"Inventário?" Perguntei surpreso.
 
Sim. Inventário de tantas coisas perdidas! Sempre tive desejos de fazer muitas coisas que nunca fiz, por não ter vontade suficiente para sobrepor-me a minha preguiça. Lembro também daquela menina que amei em silêncio por tantos anos, até que um dia foi embora do povoado sem eu saber.
 
Também estive a ponto de estudar engenharia, mas não me atrevi. Lembro de tantos momentos em que fiz mal aos outros por não ter a coragem necessária para falar, para dizer o que pensava. E outras vezes em que a valentia me faltou para ser leal. Foram poucas as vezes que tenho dito para sua avó que a amo, e que a amo com loucura. Tantas coisas não concluídas, tantos amores não declarados, tantas oportunidades perdidas!"
 
Logo, com certa alegria em seu rosto, continuou: - "Sabes o que tenho descoberto nestes dias? Sabes qual é o pecado mais grave na vida de um homem?"
 
A pergunta me surpreendeu e só atinei em dizer, com certa insegurança: "Não tenho pensado nisso ainda, mas suponho que seja matar a outros seres humanos, odiar ao próximo e desejar-lhe mal...".
 
Me olhou com afeto e me disse: "Penso que o pecado mais grave na vida do ser humano é o pecado da omissão. E o mais doloroso é descobrir as coisas perdidas sem ter tempo de encontra-las e recupera-las."
 
No dia seguinte voltei cedo para casa, depois do enterro do meu avô para fazer com calma o meu próprio "inventário" das coisas perdidas, das coisas não ditas, do afeto não manifestado.
 
autor desconhecido
                                   
se as coisas são inatingíveis... 
ora ... não há porque não quere-las...                           
que tristes os caminhos,                           
se não fora a beleza das estrelas...
  
Mário Quintana
 
 


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