segunda-feira, dezembro 08, 2003

CICLO JOSÉ RÉGIO (1901-1969) - II



PAINEL

Ora uma noite de luar medonho
(Lembro-me disto como de um sonho)
Alevantou-se um Homem a meu lado,
Todo nu, e desfigurado.

Mal me atrevendo a olhá-lo, eu quase só adivinhava
Seu corpo devastado que sangrava…
E uma lembrança, longe, longe, havia em mim
De já o ter amado, ou outro assim.

Seu rosto, que, decerto, era sereno e puro,
Resplandecia, como um mármore, no escuro;
E as suas lágrimas, rolando devagar,
Deixavam rastos que faziam luar…

Eu prosseguia, todo trémulo e confuso,
Cheio de amor e de terror por esse intruso.
À minha mão direita, ele avançava aereamente,
Com seu ar espectral e transcendente…

Os seus pés nem pousavam no caminho;
E então, eu desatei a soluçar baixinho,
Porque notara que em seu rosto exangue
As suas lágrimas corriam misturadas com o sangue.

Oh, onde a vira eu, essa figura peregrina
Feita de terra humana e de ascensão divina?
Sim, onde a vira eu, que, só de o perguntar,
Me arrepiava, com vertigens de ajoelhar?

Mas, de repente, como um sobressalto,
E como a angústia de quem rola muito de alto,
Alguma coisa em mim passou, que pressentia,
E que se arrepelava, e que tremia…

É que em meu ombro esquerdo "alguém" se debruçava,
Alguém que ria um riso que espantava,
Um riso tenebroso, e cheio de atracção,
Com fogo dentro como a boca de um vulcão!

E sem o ver, eu vi-o, todo inteiro,
Essoutro novo e inseparável companheiro:
Um que também conheço, nem sei donde nem de quando,
Por mais que me torture procurando…

E tinha pés de cabra, e tinha chifres, tinha pêlos,
E tinha olhos sulfúricos, esfíngicos e belos…
A baba do seu riso escorregava-lhe da boca,
E em todo ele ardia uma lascívia louca!

À minha mão direita, absorto aéreo, hirto,
Coroado de abrolhos e de mirto,
O Outro continuava a chorar lágrimas caladas,
Com as mãos lassas como rosas desfloradas…

Entre os dois, eu sentia-me pequeno e miserando,
Vibrando todo, tumultuando, soluçando,
Com olhos meigos, lábios torpes – indeciso
Entre um inferno e um paraíso!

Um riso doido e cínico, sem regra,
Subia em mim como uma onda negra,
E estrelados de lágrimas, meus olhos inocentes
Ajoelhavam como penitentes…

Entretanto os dois vultos desmedidos
Iam crescendo entre os meus risos e gemidos,
Crescendo sempre, sempre e tanto, que, depois,
Eu ficava esmagado entre eles dois.

A noite em que isto foi, não sei…, sei lá?... (Seria
Essa em que minha Mãe, com tanta angústia, me paria…)
Sei que o luar era medonho, era amarelo,
E que tudo isto me parece um pesadelo!


José Régio


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