domingo, abril 25, 2004

Onde é que eu estava no 25 de Abril




NOTA PRÉVIA

Este artigo foi escrito em 1992, foi publicado no Jornal da Escola, em que leccionava naquela data, com o objectivo de mostrar aos alunos, todos nascidos depois do 25 de Abril, como é que alguém que em 1974 tinha uma idade semelhante à deles, viveu aqueles acontecimentos, apesar de habitar numa cidade que estava afastada do centro de decisões. Comemoravam-se então os 18 anos da Revolução de Abril. A revolução atingia a maioridade. Todos os acontecimentos relatados são verídicos e fiéis, pelo menos tanto quanto a memória o permite. Agora que vamos comemorar os trinta da Revolução dos Cravos deixo de novo o mesmo texto e com o mesmo objectivo inicial, apenas fiz algumas pequenas correcções sobretudo relacionadas com as diferenças de anos de 18 para 30. As datas e os acontecimentos têm a importância que têm (como diria a casta política... são como as sondagens), para mim o 25 de Abril de 1974 teve toda a importância. Resolvi deixar-vos a minha recordação de como vivi o dia da liberdade há muito esperado.




EIS O 25 DE ABRIL! TANTO E TÃO POUCO!

Este é um tema que não pode ser tratado com grande objectividade. Em termos históricos as dificuldades são imensas. Se, por um lado, a nossa população escolar já nasceu depois de 1974 ou era demasiado jovem para entender a complexidade das transformações verificadas nos últimos 20 anos, por outro, os restantes portugueses viveram os acontecimentos de 74 apaixonadamente. Se no primeiro caso as dificuldades são evidentes, sobretudo numa população que, infelizmente, lê pouco, no segundo só pode haver duas soluções: depois da paixão só resta ou o amor ou o ódio, dificilmente se encontra o compromisso. Nesta dialéctica, ou na ausência dela, falta-nos a todos o distanciamento para, com objectividade, sintetizarmos o 25 de Abril. O facto é que nós portugueses não podemos esquecer as prepotências de uma ditadura de 48 anos, assim como não podemos esquecer (nós e os outros) as atrocidades cometidas pelos alemães durante a Segunda Guerra Mundial, ou por quem quer que seja em qualquer etapa da História da Humanidade. Não esquecer é conhecer e só conhecendo podemos evitar cair em erros semelhantes. O Homem tem o direito de ser feliz e não é virando as costas ao que se passa, ou passou, no mundo que poderemos caminhar para essa felicidade. Se é verdade que nunca o Homem esteve tão próximo de alcançar o bem-estar, também é verdade que nunca esteve tão próximo da autodestruição. Todos vivemos no fio da navalha, só que na esmagadora maioria dos casos não temos consciência disso. É inegável que o 25 de Abril trouxe transformações radicais, para melhor, à sociedade portuguesa. Há mesmo alguns estudiosos que afirmam que esta foi a precursora da democratização (ainda incompleta) que varreu o mundo a partir de 1974 até aos nossos dias. Além da democratização as outras grandes conquistas do 25 de Abril foram a descolonização e o desenvolvimento. Estes três "dês" mereceriam sem dúvida uma profunda discussão, que não está no âmbito deste artigo. Mantenham-se atentos aos debates televisivos e vão formando a vossa própria opinião discutindo estes temas com outros, o mais profundamente possível. Tentando ultrapassar a polémica existente em todos os assuntos que nos marcam, vou simplesmente contar-vos o dia de um jovem, do Porto, que no 25 de Abril de 1974 se levantou, tarde, para ir para o Liceu. Este jovem já estava empenhado politicamente na Associação de Estudantes do Liceu que frequentava, onde desenvolvia clandestinamente acções contra a Guerra Colonial e a Ditadura Marcelista. Saiu de casa para apanhar o trólei por volta das 8.20. As aulas começavam às 8.30. Já ia ter falta ao primeiro tempo. Não tinha ouvido a rádio nem notava que algo de estranho se estaria a passar. O sono ainda era muito e o Porto não era (é) Lisboa (Sempre a velha macrocefalia. E, já agora, para quando a regionalização?). Ao chegar ao Liceu, viu que muitos dos seus companheiros tinham faltado à primeira aula. Pensou: "Isto é que deve ter sido uma noite!". Nem teve tempo de pensar segunda vez, os amigos mais chegados correram para ele gritando que tinha havido um Golpe de Estado. Não acreditou e disse: – É como o das Caldas (tentativa falhada de Golpe de Estado em 16 de Março de 1974, em que uma coluna militar isolada partiu das Caldas da Rainha rumo a Lisboa). Não dá em nada. – Não é, pá (ainda não se usava o meu), anda ouvir no rádio. Mal chegou perto do rádio ouviu: – Aqui posto de comando do Movimento das Forças Armadas... Afinal sempre era um golpe de Estado. Mas quem estaria por detrás desse golpe? Os ultras, chefiados por Kaúlza de Arriaga, que no final do ano anterior tinham tentado um golpe palaciano quando o Marcelo estava de visita a Londres? Ou a esquerda, que pretendia devolver a liberdade ao povo amordaçado por 48 anos de ditadura, permitindo eleições livres? O que era o M.F.A.? Nessa manhã não houve aulas. Todos procuravam saber notícias, sobretudo os alunos mais velhos, muitos professores e também a maioria dos contínuos (excepto um ou outro que, desconfiávamos nós, era informador da P.I.D.E./D.G.S.). Dividimo-nos em pequenos grupos e fomos fazer uma ronda pelos quartéis da cidade. Tudo calmo, à excepção de alguns sacos de areia nos muros, como se estivessem na eminência de sofrer um ataque. Polícia não se via. As pessoas começavam a falar umas com as outras (coisa rara nas cidades). Algo estava mesmo a acontecer. Já não havia dúvida. Era preciso que o golpe saísse vitorioso. O povo anónimo veio para a rua. As edições especiais dos jornais, sem censura (finalmente), esgotavam imediatamente. Na Praça da Liberdade festejava-se a vitória. As pessoas pareciam conhecer-se desde sempre e confraternizavam na rua. Repentinamente, por volta das 3 da tarde, surgiram diversas carrinhas da Polícia de Choque vindas da Batalha. Parecia o 1º de Maio, só que desta vez a multidão fez frente à Polícia e a batalha começou... cassetetada e tiro daqui, pedrada e correria dali. Alguém correu à Praça da República, avisou o Quartel General do que estava a passar-se e eis que surge lá no alto, junto da Câmara Municipal, formados lado a lado, os Militares, que em correria por ali abaixo expulsaram a Polícia de Choque, que pela última vez reprimia o Povo que apenas queria ser Livre. Naquele fim de tarde de Abril, no Porto, todos sentiram que estavam a viver o Dia 1 da Liberdade. A Liberdade conquistada com o 25 de Abril não caiu do céu. Não nos foi dada, mas conquistada por muitos e muitos milhares de portugueses que lutaram por ela, que foram presos por manifestarem as suas opiniões, torturados, assassinados. Por isso a liberdade não se recebe, mas conquista-se e defende-se, com a própria vida se for preciso, pois só se reconhece o valor das coisas quando as perdemos. Também foi a dinâmica popular que se gerou após o 25 de Abril que transformou um golpe de estado na Revolução que viria a transformar o País. Depois, e durante muito tempo, não houve mais noite. O Povo devolveu o significado às palavras. Quase todos acreditámos na utopia, quase todos pensávamos construir um mundo onde coubessem todos, mais livre e mais justo. Queríamos, poeticamente, construir a cidade sem muros nem ameias de que fala o Zeca Afonso. Quando acordámos a realidade não era bem aquela que sonhámos, mas é bem melhor que o passado. Como diria o professor Agostinho da Silva, não devemos ser saudosistas. Recordar sim, mas para perspectivar o futuro. Na História da Humanidade, o 25 de Abril foi um acontecimento microscópico, como todos os passos dados pelo Homem o são, isoladamente. A valorização das coisas só é possível pela síntese do que permitiu a evolução da Humanidade e, sem dúvida, o 25 de Abril faz parte dessa síntese. Tal como a criança que, brincando na areia, faz e desfaz as suas próprias construções, na busca da perfeição, temos andado nós, nestes 30 anos, tentando realizar os sonhos que então sonhámos. O 25 de Abril foi, e será sempre, a porta aberta para o sonho, para a solidariedade, para a generosidade.

25 de Abril Sempre!


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